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O grito vazio

por Patrícia Farias | @patricia.dxb



:: No caminho dos sonhos eu sigo, ora anotando, ora desenhando. Tudo depende da intensidade das imagens que surgem e do quanto isso vira história na cabeça da gente. Imaginação ativa. Sempre.


Nos últimos dias estou com uma cena rondando o pensamento e ela é quase assustadora. Por favor, não tenham medo dessa leitura, até porque quando nomeamos os medos eles ganham uma certa presença, saem da sombra escura e, talvez por isso, possamos lidar melhor com eles, enfrentá-los ou apenas reconhecê-los, para curá-los quando for possível.


Desde que nos mudamos para o Bahrein, estamos morando numa casa de dois andares, que tem uma escada que leva ao telhado. Escada morta, que a gente só usa quando precisamos fazer alguma manutenção. Noite dessas tive um pesadelo. Eu saía do quarto olhando para o chão e via os pés descalços de uma pessoa descendo essa escada. Enquanto eu levantava o olhar, via que ela vestia uma calça preta larga e uma blusa solta por cima, também preta. Era uma mulher muito branca com cabelos da cor do sol. Seus lábios eram pretos e abertos como quem grita, mas eu não escutava nada. Era um silêncio vazio. 


Eu sentia como se perdesse o fôlego, numa simbiose de dor e temor. Gelei. Olhei-a firmemente e disse-lhe que fosse embora. Seu rosto permanecia me encarando fixamente, enquanto seu corpo se movia para trás e subia a escada de volta, lentamente. 


Acordei num susto!


Anotei o sonho, levei para a terapia, pensei ser a morte, mas não concluímos a interpretação. Passado uns dias, decidi desenhar essa imagem, já que ela  continuava aparecendo sutilmente na memória, toda vez que eu passava pela escada. Curioso é que ela já não me assustava. Seria um espírito sofrido por aqui? Minha intuição dizia que era coisa da minha cabeça. Inconsciente apontando emoção escondida. Talvez.


Fim de semana chegou e fomos despertados com a terrível notícia do ataque de Israel ao Irã, em um bombardeio “surpresa”. Pessoas, casas, cidades. A razão luta para querer entender mais uma guerra sendo provocada e como sempre trazendo “justificativas” para ambos os lados. Interesses escusos. Quem ataca? Quem retalia? Quem defende? Guerra é guerra, multiplicando feridos e sedentos. É luz em céu escuro, fumaça em céu claro. Choro, morte, escombros. Grito vazio. 


Recordo a mulher na escada: pesadelo ou premonição? Meu coração acelera e prefere crer que era apenas um sonho ruim. 


Enquanto escrevo esta crônica, a mídia borbulha ameaças, aeroportos são fechados, drones interceptados. E de onde estou, escuto ao longe a mesquita viva no cântico do Muezim convocando os fiéis para oração. Compaixão lá fora. Cabe a mim oração aqui dentro.





Patrícia Farias | @patricia.dxb  é jornalista com Pós-graduação em Cultura Teológica. Faz da habilidade de comunicação o ponto de encontro com o outro. Morou no Oriente Médio, onde se dedicou à coordenação de trabalhos sociais e de educação. Nessa experiência plural, reúne a escrita e a oratória para construir histórias, e assim poder contá-las.





ARTE: Andréa Samico

 
 
 

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