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Monstros de todos nós

Resenha | "O Manual do Monstro" *, um livro sobre o amor e seus descaminhos


por Renata Fonseca


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Monstros existem. Não importa se o que te assusta hoje era o seu alívio de ontem. Não importa do que se travestem, nem se têm olhos que ludibriam. Existem na nossa alma desabitada, onde tentam fazer morada. “Quem é o monstro de quem?”


Laura somos nós, as mulheres que sobrevivem aos trancos da vida, as que se regeneram na dor. De fora, sabemos bem o que ela deve ou não fazer. Temos aquela falsa impressão de que conosco seria diferente. Laura ainda confessa que, naquela situação, veria em outras mulheres um amor doentio. O que Laura não veria naquele momento é que sua vida sempre foi pontuada pelo machismo e sua implícita aceitação, disfarçado de “proteção”, de “necessidades especiais que os homens têm”, a exemplo do irmão. O irmão transtornado, incapaz de se enxergar em Diego, o traidor. O irmão, que foi protegido pela mãe, que se tornou rude e intransigente, fora outrora o monstro de outra mulher. A filha o torna sensível à canalhice masculina, mas não se importa em ser o canalha da filha dos outros. Quando Laura se depara com Diego e Catarina, é o pai traindo a mãe, é o irmão traindo a cunhada. Laura faz parte de um moto-contínuo instituído, onde se repetem os padrões. 


E se de perto ninguém é normal, de fora somos sábios da vida alheia, onde jamais seríamos enganados. Nós, os formidáveis observadores do óbvio. Quando Laura se depara com a omissão de Diego sobre o fato de ter uma filha, tem-se aí, não um sinal, mas uma bandeira enorme mostrando o quão dissimulado poderia ser. Sinais. Todos sempre dão sinais precoces daquilo que são, seja numa reação desmedida ou numa brincadeira ou num ato falho. Se omitiu a própria filha, que noção de fidelidade familiar este homem poderia ter? Laura achou que com ela seria diferente e desprezou o inconsciente, esse que vive a nos intuir. Como fazemos nós, as mulheres, com tanta frequência. 


A sobrinha, quase uma vítima, coitada, do alto dos seus 25 anos, dissimula e manipula com destreza. Problemas psicológicos anteriores são o escape para a suposta inocência. Uma sonsa. Monstro da tia, anjo do pai. 


Depois, resta à Laura o abismo, a queda, o fundo. A tentativa de subir de volta faz fortalecer o corpo e a alma, mas ela nem sabe disso. Quando pela última vez deixa a casa, já não é a mesma Laura, traz dentro de si uma nova resolução. Mas Diego será sempre o mesmo. Seu irmão também. Há no mundo uma condescendência com o ser masculino em sua pior versão. Que se danem todos eles. 


O livro é um soco no estômago. Vivemos a agonia de Laura e as lembranças de nossos próprios desamores voltam a nos assombrar.  Sempre haverá um monstro, sempre. Mas aquele que nós mesmas alimentamos e fazemos crescer dentro de nós ainda é o mais assombroso. Saber domesticar o monstro em nós, exige mais que um espírito domador. Exige coragem de reconhecer-se no criador e não na criatura. 


E assim, juramos que da próxima vez, seremos cautos e espertos como os que estão de fora, como os juízes, como eu agora. 


Quem nunca foi Laura, que atire a primeira pedra.


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*O manual de monstro é um livro de Helena Duncan e está à venda aqui no site da Interseção.



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Renata Fonseca | @renata_fonsecabh é mineira de Belo Horizonte, bancária por profissão e analista de sistema por formação. É amante da literatura e leitora voraz desde muito cedo. A poesia de Fernando Pessoa foi o encantamento que mudou tudo na maneira dela escrever, de entender como as palavras podem ser mágicas e de perceber a língua portuguesa como instrumento de arte e beleza profundas.




ARTE: Andréa Samico

 
 
 

1 comentário


Gisele
12 de nov.

Cirúrgica a resenha da Renata Fonseca. Somos todas Lauras.

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