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de leite*

por Daniel Massa | @danielmassa




:: residente à rua bambina bairro botafogo necessito - tomando como constante velocidade a que nesta altura meu corpo suporta em certo conforto físico - de em média 15min para percorrer os aproximadamente 3km que separam este apartamento de térreo em que vivo da praia vermelha bairro urca

em qualquer ponto da enseada do bairro botafogo é possível ver os morros siameses que batizados distintamente como morro da urca e morro do pão de açúcar são conhecidos somente pelo nome do irmão mais velho

esta posição geográfica faz com que eu tenha contato visual com o morro - não necessariamente da janela de casa já que apartamentos de térreo embora sejam mais em conta não contam com vista para o pão de açúcar mesmo a pouca distância - mas quando

visito o dentista

corro no aterro

ou pego o recibo do aluguel com a proprietária que trabalha no prédio da coca-cola

de modo que o pão de açúcar está para mim hoje como divindade: escamoteado e onipresente

uma vez quando ainda não morava no bairro botafogo mas em niterói estive no pão de açúcar eu já era velho e tinha meu diploma em letras o que significa que precisei pagar o caro ingresso na modalidade inteira sem o desconto para estudantes

outra vez subi e desci o morro da urca pela trilha de dificuldade moderada acessível pela pista claudio coutinho e essas foram as únicas vezes em que estive lá

no entanto é comum em fins de semana correr até a praia vermelha e quem sabe mergulhar na praia vermelha ali aos pés do pão de açúcar é bonito deitar na areia e ver o mar com o morro ao fundo

não tem uma semana em que deitado na areia pensei em como os cabos chegaram lá em cima como construíram a estação lá em cima que loucura deve ter sido e munido de celular com acesso à internet móvel pude descobrir em fonte segura que foram necessários 100 alpinistas carregando instrumentos e peças variadas nas mochilas subindo e descendo algumas vezes até construir uma roldana espécie de guincho que pôde aí sim içar um elevador rudimentar que por sua vez conduziu novas peças até o topo do morro e os próprios cabos de aço utilizados pelo bondinho

todo o processo foi finalizado em 1912 e custou 2 milhões de contos de réis o que em números atuais seria algo em torno de 100 bilhões de reais - equivalente ao pib do zimbábue bósnia herzegovina trinidade e tobago ou afeganistão por exemplo

estima-se que 40 milhões de pessoas já tenham visitado o pão de açúcar e eu não saberia dizer se com a bilheteria arrecadada o investimento foi recuperado

e há muita coisa que afinal não sabemos dizer ou em algum momento esquecemos de dizer por exemplo quem saberia qual fio une um senhor do povo desana do alto rio negro que neste instante está dentro de sua casa no município de são gabriel da cachoeira naquilo que chamamos cabeça do cachorro ou calha norte amazônica qual a ligação entre este senhor e eu que vivo num apartamento de térreo na rua bambina qual a ligação entre este senhor à margem do tiquié e eu que me encontro à margem da enseada de botafogo

é necessário neste ponto voltar a um tempo antes do ingresso caro do alpinista do aterramento do forte da praia vermelha e da fundação da cidade de são sebastião do rio de janeiro é necessário voltar a um tempo imemorial sem apartamentos de térreo sem nada para além da maloca do céu ou para além da avó do mundo e do desejo de estender o que havia dentro para fora ocupando o oco primordial

e foi ali que este morro antes de pão e de açúcar foi um seio do qual jorrou todo o leite necessário para inundar a cuia ao redor esta cuia que em algum momento de displicência foi confundida com a foz de um rio por quem veio de longe e esteve aqui tão displicente e desatento como eu que já ciente de sua condição de baía atravessei por tantas vezes a guanabara entre a praça xv e a praça arariboia sem saber que era de leite a água e que foi aqui que tudo começou

pois foi aqui que a cobra-canoa ergueu-se conduzindo do fundo - mais abaixo mesmo que o apartamento de térreo em que vivo - do fundo da terra a gente da transformação estes navegantes da cobra-canoa que subiram e inauguraram aquilo que entendemos como humanidade e foi aqui que antes mesmo da cobra-canoa seguir viagem alguns desembarcaram e quedaram-se às margens do lago de leite na primeira maloca de transformação que ficava aqui mesmo bem perto da rua bambina e na mesma altura que um apartamento de térreo

os outros viajantes saltaram da cobra-canoa após longo caminho até a maloca de maracá confundida hoje com belém do pará e depois foi-se além contra a correnteza do amazonas até manaus mais precisamente o bairro educandos mais precisamente o bodozal ali mesmo está a maloca da cobra o centro do universo indígena acolhimento de gente de peixe de encantados mas a cobra-canoa a despeito do desembarque de alguns poucos não deu por finda sua viagem e foi além adentrou no rio de leite a que hoje curiosamente chamam rio negro e foi além subindo sem dar-se por satisfeita cada vez mais leve na medida que mais gente da transformação foi caindo às margens e montando suas malocas até por fim cansar-se ou saber-se em ponto exato instintivo destino é aqui a cobra-canoa fez e parou até as últimas gentes da transformação descerem exaustas do longo trajeto mas cientes de que a viagem valeu a pena afinal estavam no lugar exato onde deveriam estar nesta cachoeira aqui mesmo uapés é aqui não há dúvidas onde precisam estar e desse modo desceram e construíram a última maloca

aqui está o ponto em que retornamos: o fio que une o velho desana em uapés e eu sitiado na rua bambina é um só e é mesmo mais que um fio é uma cobra que também é uma canoa extensa da qual todos fomos passageiros embora alguns tiveram a chance de descer no ponto final


* este texto foi publicado originalmente como posfácio do romance em versos fio d’água, lançado em novembro de 2022 pela editora 7Letras.





Daniel Massa | @danielmassa nasceu em Saquarema, em 1986. É poeta e professor. Publicou não tem nome de quê (BR75, 2021) e Fio d’água (7Letras, 2022). Em 2022, idealizou e ajudou a construir o projeto Biblioteca Indígena do Xingu, na Aldeia Ipatse, do povo kuikuro.




ARTE: Andréa Samico | @andreasamico

Referências visuais na colagem:

1. pintura “Vista do Pão de Açúcar tomada da estrada do Silvestre”, de Charles Landseer (1799-1879) ;

2. desenhos de Luiz Gomes Lana, presentes no livro "Antes o mundo não existia", Mitologia Desana.

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